Deparei hoje com essa crônica do memorável mineiro Rubem Alves (1933 – 2014), notável teólogo, educador, psicanalista e escritor, que vi publicada no site “revista pazes“, no último dia 30 de outubro. A genialidade, a sensibilidade e a bagagem cultural desse grande brasileiro são mesmo impressionantes, na minha percepção!
No referido texto, ao discorrer sobre o amor e o tempo (ou vice-versa), Rubem Alves faz inteligentes analogias entre as plantas, as estações do ano e os humanos, estes no transcorrer das diversas etapas da vida (ou faixas etárias), amarrando, para fechar sua transbordante inspiração, com versos da linda composição musical Todo Sentimento (Chico Buarque / Cristóvao Bastos).
Com a leitura, a seguir, espero que você fique tão bem impactando como aconteceu comigo. Além do mais, tenho cá pra mim que a sexta-feira seja um dia para muitas inspirações!
Confira:

“O tempo da delicadeza” – uma belíssima crônica de Rubem Alves
“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu”, diz o texto sagrado. O amor também tem os seus tempos e ele muda como mudam as estações.
Nos países frios, a primavera é o tempo da pressa. Os bulbos, que por meses haviam hibernado sob o gelo, repentinamente despertam do seu sono, rompem da noite para o dia a camada de neve que os cobria e exibem, sem o menor pudor, os seus órgãos sexuais coloridos e perfumados, suas flores. ”Que lindas…”, dizemos. Ignoramos que aquela é uma beleza apressada. A primavera é curta. Outro inverno virá. É preciso espalhar o sêmen com urgência, para garantir a continuidade da vida. Por isso se exibem assim, em sua nudez colorida e perfumada, para atrair os parceiros do amor.
Se as plantas pensassem, teriam os mesmos pensamentos que têm os jovens quando neles desperta o sexo, em todo o seu furor de realizar-se É só isto que importa: o coito. Passado o êxtase. Vai-se o interesse, fuma-se um cigarro, vira-se para o lado…
O verão é o tempo em que a fúria reprodutiva já se esgotou. Tempo maduro, tempo do trabalho dos filhos, das rotinas domésticas. Os mesmos olhos que se excitavam ao contemplar o corpo nu da pessoa amada já não se excitam. Já não sorriem nem têm palavras poéticas a dizer sobre ele. Há uma rotina sexual a ser cumprida. Vai-se o encantamento, os olhos e as mãos se cansam da mesmice e começam a procurar outros corpos e vem a saudade da juventude que já passou. Cumprido o ato, vem o silêncio.
O outono é a estação de uma nova descoberta. Não há urgência. Nenhuma obrigação. A natureza está tranquila. Na adolescência qualquer mulher servia, porque o sexo era comandado pelas pressões vulcânicas dos hormônios e pelos genitais. Agora o que excita é o rosto da pessoa amada. O sexo deixa de ser movido pela bioquímica que circula no sangue e passa a ser movido pela beleza. O amor se torna uma experiência estética. E o que os amantes outonais mais desejam não são os fogos de artifício do orgasmo, mas aquela voz que diz: “Como é bom que você exista…”
O outono é o tempo da tranqüilidade. É bom estar juntos, de mãos dadas, sem fazer nada. É bom acariciar o cabelo da amada… Esta é a grande queixa das mulheres – que para os homens a intimidade é sempre preparatória de uma transa. Talvez porque se sintam obrigados a provar que ainda são homens. O que as mulheres desejam não é o prazer, é felicidade. O outono é o tempo do amor feliz.
O Chico escreveu sobre esse tempo e lhe deu o nome de “tempo da delicadeza”, na canção “Todo o sentimento” (letra de Chico Buarque e melodia de Cristovão Bastos). “Preciso não dormir até se consumar o tempo da gente…”
Sim, preciso não dormir, preciso não morrer, porque há muito amor ainda não realizado. “Vem-lhe então a memória do amor que, por descuido, não se realizou, e via em busca da sua recuperação: Pretendo descobrir no último momento um tempo que refaz o que desfez…”
Esse verso me comove de maneira especial. Pensando no meu desajeito, na minha desatenção, vou lembrando das coisas que derrubei, das palavras que não ouvi, das flores que pisei. E dá uma vontade de fazer o tempo voltar para poder refazer o que foi desfeito, para recolher todo o sentimento e colocá-lo no corpo outra vez…
Aí ele vai mansamente dizendo as palavras que o amor deve saber dizer, palavras que só existem no “tempo da delicadeza”. “Prometo te querer até o amor cair doente, doente…” Por isso, por causa desse tempo misterioso, é preciso amar cuidadosamente com o olhar, com os ouvidos, com a mão que tateia para não ferir… enquanto há tempo.
****
Lembrei-me do amor de Florentino Ariza por Fermina Daza, de o ‘Amor nos tempos do cólera’. Tiveram de esperar 53 anos e passaram o resto da vida navegando no rio da delicadeza.
– Rubem Alves, texto publicado originalmente no ‘Correio Popular de Campinas’, em 10 de agosto de 2008.
Via Revista Prosa, Verso e Arte
Fonte: https://www.revistapazes.com/o-tempo-da-delicadeza-uma-belissima-cronica-de-rubem-alves/
Excelente, também me lembrei de Florentino Ariza e Fermina Daza, do livro ‘Amor nos tempos do cólera’, um dos melhores que li na vida. Salve os grandes poetas ! Abraço.
Preciso ler esse Amor nos tempos do cólera, certamente um livro fabuloso. Vou atrás!
Valeu pelo comentário, meu caro!
Texto verdadeiro e emocionante… amei!
Também achei. Luci. Grato pelo registro!
Grande Mestre Rubem Alves!
Legal, também, é recordar que estive em palestra desse mestre, ao vivo, em Brasília. Não dá para esquecer!
Abraço, Pedro
Que delicado e emocionante texto!