A genialidade do escritor português José Saramago (1922 – 2010 ), ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1998, deixou marcas riquíssimas para a posteridade. Como mais uma mostra do valor da sua obra, refiro-me hoje à belíssima crônica “Carta para Josefa, minha avó“, que foi publicada no jornal A Capital, em 14 de março de 1968, conforme mencionado no site da Fundação José Saramago – https://www.josesaramago.org/carta-josefa-minha-avo-1978/:

Ao longo da crônica, desenvolvida com o propósito de analisar – e compreender – o que seria o jeito de viver da sua avó, os questionamentos se sucedem, na busca de oferecer respostas para as próprias inquietações levantadas pelo escritor. Por óbvio, ele não terá todas as respostas.
Constatar que alguém seja capaz de sorrir, de transmitir alegria, de estar feliz com a sua vida e com o mundo, apesar de viver com tão poucos recursos materiais e sociais, com limitada instrução e com restrito conhecimento do que está além do seu ambiente físico, convenhamos, chega a surpreender. Por essas e outras, temos aí mais uma demonstração de que estar de bem com a vida, e sentir-se feliz, é fundamentalmente um estado de espírito!
A primorosa “carta”, por todos os méritos, mereceu algumas narrações registradas em vídeos, que estão publicados no YouTube. Para esta postagem, selecionei a declamação feita pelo escritor português Álvaro Cordeiro, divulgada em 21 de janeiro deste ano.
Aí está o vídeo e, logo a seguir, está reproduzido o texto na íntegra. Creio que você se deliciará com esta crônica inteligente e singela!
CARTA PARA JOSEFA
(texto de José Saramago)
Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.
Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos
coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.
Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”.
É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.
José Saramago foi um dos grandes luminares das letras, no que diz respeito, em particular, à literatura, esta como responsável pelo Prêmio Nobel a que fez jus, imortalizando-o muito merecidamente. Que bela crônica, de sua lavra, em .homenagem à sua vó, ele nos legara. Não menos bela do que a crônica foi o exemplo de vida da homenageada. Forte abraço, amigo Dattoli, como parabéns pela sua garimpagem de preciosidades como essa.
O seu comentário, caro Landim, é sempre enriquecedor. Da minha parte, fico grato pelas palavras de incentivo!
Forte abraço
Excelente, como sempre foi, é e será Saramago.
Verdade!!!
Lindo, meu a amigo. Muito obrigado.
Bom que gostou, caríssimo Oslei. Forte abraço!
Lindo! Maravilhoso!
Grato pela partilha.
Muito grato pelo gentil comentário, Leonel!
Achei poetico. Um pouco sentimental mas gostei de perder tempo na aula de português. Super recomendo
Grato, Rodrigo, por comentar!