Em importante artigo que reproduzo abaixo, publicado no blog FRONTEIRAS DO PENSAMENTO, o francês Pierre Lévy, filósofo, sociólogo e pesquisador em ciência da informação, traz abordagem significativa e oportuna a respeito do mundo da Internet, com reflexões sobre o que ainda está por vir em favor do conhecimento articulado e da integração cognitiva entre as pessoas/comunidades.
O filósofo argumenta que, a despeito da grande revolução – e democratização – ocorridas com o advento da Internet, que pode ser tida como uma verdadeira transformação cultural, há muito espaço para a expansão da inteligência e memórias coletivas, numa tarefa a ser construída, em virtude de uma realidade que, nesse particular, ainda seria incipiente. Para tanto, preconiza a necessidade de que se desenvolva uma espécie de interconexão semântica, que é mais do que a atual conexão material, “no sentido de um aumento da inteligência coletiva…”
Vale muito a leitura, a seguir:
“A web de ontem, a web de amanhã
Pierre Lévy é um dos principais pesquisadores sobre culturas tecnológicas. Um filósofo do ciberespaço, Lévy propõe que a web caminhe rumo a uma inteligência coletiva reflexiva, um ambiente para o desenvolvimento cognitivo coletivo e para o conhecimento aberto.
Segundo o intelectual francês, a web está apenas no início e o futuro reserva uma nova ideia de inteligência coletiva. Não se tratará mais do compartilhamento de dados, mas sim de significados.
“Seria preciso realizar uma espécie de interconexão semântica, além da interconexão material que existe entre páginas e computadores. Se conseguirmos fazer isso, as consequências positivas serão muito importantes no sentido de um aumento da inteligência coletiva global, aumento não só do raciocínio lógico, mas também do processo de interpretação, dos processos hermenêuticos, de tudo que nos permite dar sentido à informação ou ao dado bruto.”
Quem nos fala mais sobre a evolução da web é o próprio filósofo. Confira abaixo.
A noção de democratização é sempre importante na história dos instrumentos simbólicos. A escrita, no começo, era o privilégio dos escribas; depois, numa evolução gradativa, todo o mundo aprendeu a ler e a escrever.
No início, os computadores só podiam ser manipulados por especialistas, em pequeno número, porque era muito difícil fazer computadores funcionarem. Depois, a evolução técnica, a evolução da programação, levou à essência do computador pessoal, isto é, um computador que se pode utilizar sem ser especialista e cujo preço é relativamente acessível.
Então, por um lado, a informática pessoal se difunde e, por outro, uma rede de computadores começa a se constituir. A grande invenção, a grande ideia da Internet é simplesmente dar a cada computador da rede um endereço, de modo que todos os computadores possam se comunicar entre si. No fundo, a Internet é um sistema de endereçamento dos computadores interconectados.
A partir dos anos 1980, fala-se de convergência e de digitalização das mídias. Começa-se a produzir material sonoro digitalizado, material visual digitalizado, material textual digitalizado. E disseram: “Mas se tudo afinal pode ser codificado com zero e um e se é possível transformar, criar, intercambiar as imagens, os sons, os textos e tudo o que se quiser com computadores, então vai haver uma espécie de convergência de todas as mídias nesse novo meio de comunicação digital.”
Era um pequeno número de pessoas que pensava assim nos anos 1980. Mas isso começou a ficar evidente por volta da metade dos anos 1990 com o aparecimento da World Wide Web.
E o que é a World Wide Web? Bem, é um sistema de endereçamento. Mas, em vez de ser um sistema de endereçamento dos computadores, como na Internet, é um sistema de endereçamento de páginas.
Assim, cada página na Web terá um endereço particular. E, como cada página tem um endereço, pode-se fazer a ligação de uma página a uma outra. São os famosos hiperlinks. É assim que a Web constitui um imenso hipertexto ou hiperdocumento que reúne todos os documentos que se encontram dentro.
Será que a coisa se detém aí? Acredito que não. Acredito que estamos só no começo da construção do ciberespaço e que, provavelmente, haverá outras evoluções. A Internet é o início das comunidades virtuais, o início da convergência das mídias, a apropriação pessoal do poder da informática.
A Web, porém, trata-se de uma imensa transformação cultural, porque é a primeira vez que se tem uma esfera pública mundial.
Antes, a esfera pública era essencialmente nacional, ela se baseava na imprensa, no rádio, na televisão e, hoje, a comunicação se dá diretamente de forma mundial.
Ela é multimídia e, além disso, em vez de ser controlada principalmente pelos que possuem grandes empresas de comunicação, é apropriada e distribuída de forma cada vez mais democrática por todo o mundo.
Todo o mundo pode ter seu site, seu blog. Todo o mundo pode contribuir, digamos, para a acumulação do conhecimento, por exemplo, que se faz nas grandes enciclopédias como a Wikipédia.
Portanto, é algo muito, muito aberto, no qual a distinção entre proprietários de mídias, produtores, autores, consumidores, autores e leitores, está em via de se apagar progressivamente.
Assim, essa nova esfera pública é não apenas mundial, ela possui igualmente características muito particulares nas quais cada ator vai interagir com os outros. Desta forma, já há uma grande revolução na comunicação. Mas, em minha opinião, ainda é só o começo.
A direção em que trabalho é uma direção na qual uma nova camada virá se acrescentar a todas as camadas precedentes. Camadas que seriam baseadas no endereçamento não mais de páginas, mas no endereçamento de conceitos, no endereçamento das ideias.
O que tenho em mente é um espaço infinito, absolutamente aberto, que contenha todas as ideias, todos os conceitos possíveis e imagináveis.
Mas, embora esse espaço seja infinito, mesmo assim podemos coordená-lo de uma maneira precisa. É um pouco como o espaço físico. O espaço físico é infinito, mas um ponto nesse espaço pode ter coordenadas bem definidas num plano matemático.
No mundo das ciências da informação, geralmente se distinguem os chamados dados e os metadados. Os dados são os documentos mesmos; por exemplo, numa biblioteca, um livro. E os metadados sobre esse livro é o que está escrito na pequena ficha que há nos fichários das bibliotecas.
É a informação sobre o dado. E é esse metadado que permite classificar os dados e fazer pesquisas nos dados, reencontrá-los mais facilmente. Então, esses endereços de conceitos fariam parte de um sistema de metadados.
Assim, o que imagino é um sistema universal de endereçamento de conceitos que poderiam servir de camadas de metadados sobre todos os dados existentes na Web, e que nos permitiriam explorar muito mais aquilo que hoje a memória universal está esboçando no horizonte dessa civilização do saber.
Embora todos os dados estejam reunidos no mesmo lugar, embora todos estejam interconectados tecnicamente, eles permanecem separados no plano semântico.
Por quê? Porque falamos línguas diferentes no planeta. E não apenas falamos línguas diferentes, mas, quando trabalhamos num domínio de conhecimentos particular, temos disciplinas. E cada disciplina tem seus próprios conceitos, sua própria maneira de organizar as coisas.
Temos sistemas de documentos diferentes, temos sistemas de organização de conhecimentos ligados a disciplinas diferentes e, em geral, incompatíveis.
A inteligência coletiva, a exploração da memória coletiva em via de se construir, ainda está muito abaixo do que poderia ser. Seria preciso realizar uma espécie de interconexão semântica, além da interconexão material que existe entre páginas e computadores.
Se conseguirmos fazer isso, as consequências positivas serão muito importantes no sentido de um aumento da inteligência coletiva global, aumento não só do raciocínio lógico, mas também do processo de interpretação, dos processos hermenêuticos, de tudo que nos permite dar sentido à informação ou ao dado bruto.
Importantes, é claro, no sentido de um aumento das interpretações possíveis, não no sentido de um fechamento das interpretações possíveis. Trata-se de aumentar a capacidade da interpretação, não de reduzi-la. “
Interessante a ideia, mas um tanto utópica, a meu ver!
Transformar a informação em conhecimento, e este em sabedoria, já é uma tarefa hercúlea individualmente, imagine coletivamente…
Grato, caro Arnaldo!
Claro que há muito chão a percorrer e bastante desafio no rumo da abordagem em referência. Entretanto, gosto muito desses olhares prospectivos e questionadores. Afinal, os filósofos estão aí para trazer inquietações e nos provocar!
Esperemos, pois, o andar dos acontecimentos, mais do que nunca em velocidade pra lá de Fórmula 1. Rsrs
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